Crise pode retardar retomada do crescimento do país, dizem analistas.
Em meio à mais grave crise econômica das últimas décadas, o “calote” nos cartões de crédito atingiu níveis recordes nos Estados Unidos.
Juntos, os americanos devem às operadoras de cartões US$ 931 bilhões, segundo a Credit.com, empresa que faz avaliação de crédito nos EUA. A cifra é quase seis vezes o valor de mercado da Petrobras, a maior empresa brasileira.
Há hoje em circulação nos EUA, segundo Adam Levin, presidente da Credit.com, cerca de 800 milhões de cartões – uma média de seis para cada cliente do sistema (para efeito de comparação, no Brasil há cerca de 128 milhões de cartões).
“É muito cartão de crédito”, aponta o executivo. Com números tão altos, as empresas projetam perdas de US$ 90 bilhões este ano em dívidas que já não têm esperança de receber.
No mês passado, a dívida média dos americanos com o cartão de crédito chegou a US$ 7,3 mil. Consequência, dizem os analistas, da irresponsabilidade tanto das administradoras quanto dos consumidores.
“As empresas emprestaram irresponsavelmente, os consumidores gastaram irresponsavelmente, todo mundo estava acreditando que amanhã seria ainda melhor do que hoje. E aí tivemos a virada, o desemprego, e esse cenário mudou”, explica Levin.
Histórico
A crise dos cartões de crédito é a última – pelo menos até agora – etapa do colapso da economia americana.
Mas sua origem está, segundo os analistas, na baixa taxa básica de juros praticada no país (a ‘Selic’ dos EUA), que levou as empresas do setor a expandir o crédito a níveis considerados exagerados para garantir seus lucros.
“O que provavelmente aconteceu é que houve uma leve indução dos bancos. Eles socaram crédito, e isso induz as pessoas a tomarem dinheiro emprestado. O crédito fácil induziu de certa forma a que o consumidor chegasse a esse nível (de endividamento)”, explica Ricardo Araújo, economista e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Para Levin, essa indução não foi tão “leve” assim. "Toda semana, os consumidores recebiam ‘cheques de conveniência’ pelo correio, com uma cartinha dizendo que bastava depositar. Era a cocaína do crédito, quase irresistível. Eles também iam às universidades oferecendo tudo grátis para quem contratasse um cartão. E os estudantes acabavam com quatro, cinco cartões de crédito, e com uma dívida às vezes de mais de US$ 3 mil quando se formavam”, afirma.
“Acho que essa crise poderia ter sido evitada se as empresas não tivessem ficado atirando dinheiro nas pessoas”, declarou.
Enquanto o crédito no país esteve abundante, essa situação não gerou problemas mais sérios. Mas veio a crise.
“Era um festival de crédito. E uma vez que o carnaval acabou, as pessoas subitamente se deram conta de que existe essa palavra feia chamada consequência. Nós todos fizemos isso a nós mesmos”, diz Levin.
Segundo os especialistas, a restrição de outras linhas de crédito também contribuiu para que os americanos buscassem o cartão para pagar suas contas.
“Os consumidores estavam confortáveis com o crédito. Mas com a depreciação imobiliária, as linhas de crédito não são mais o que costumavam ser. Eles não têm mais essa fonte de alavancagem para usar para fazer compras”, explica Ezra Becker, analista da empresa norte-americana de gestão de crédito TransUnion.
Em uma repetição do que ocorreu com a crise das hipotecas, a falta de uma regulamentação mais rígida e transparente sobre o setor é apontada pelos especialistas como responsável pelo que o executivo da Credit.com qualifica de “festival de irresponsabilidades.
“As empresas de cartões de crédito, podiam, a qualquer momento, aumentar sua taxa de juros. Você tem muita gente que acordou um dia e descobriu que a taxa de juros do seu cartão de crédito tinha ido de 8% para 18%, ou de 15% para 30%”, diz ele.
“O Fed (Federal Reserve, o BC dos EUA) permitiu que o ativo dos bancos inchasse nas carteiras de crédito. Os bancos incharam seus ativos com um volume demasiado de crédito ao consumidor. Houve um exagero, o Fed não pensou nas dívidas, nas inadimplências”, explica o professor Araújo, da FGV.
Futuro
A crise dos cartões assombra o já combalido sistema financeiro do país. Mas, se até o início do ano havia o temor de que o problema resultasse em mais uma onda de falências no setor financeiro, agora a expectativa é “apenas” de que contribua para retardar a retomada do crescimento.
“Acho que não está nem perto de ser tão ruim quanto poderia ter sido”, diz Ezra Becker.
A razão, segundo ele, é que, ao contrário da questão das hipotecas, esse problema foi observado com antecedência, e o mercado teve tempo de agir, reduzindo a oferta de crédito aos consumidores com alto risco de crédito e renegociando dívidas.
O próprio governo dos EUA também reagiu, no mês passado, aprovando uma lei que restringe juros e taxas cobrados pelas administradoras.
“No curto prazo, essa legislação pode causar dor aos emprestadores, enquanto eles buscam formas de recuperar suas perdas. Mas no longo prazo força a inovação, força os emprestadores a encontrar novos produtos que serão mais benéficos para os consumidores” diz Becker.
A solução final, no entanto, só deve vir com a retomada do crescimento econômico, segundo o professor Araújo.
“O grande problema hoje é se o crédito vai ser restabelecido. Se o americano médio está inadimplente, é preciso que ele aumente a sua renda, e isso só vai melhorar com o aumento do emprego. Quando a economia apresentar níveis de crescimento do consumo, certamente isso vai levar a um aumento da renda, e isso é que pode, junto com a saúde financeira dos bancos, melhorar essa situação de crédito”.
Os próprios consumidores, dizem eles, estão fazendo sua parte – também porque, com o país em crise, perder a única fonte de crédito pode significar o fim da linha.
“As pessoas estão se esforçando para manter o bom relacionamento com o cartão porque, muitas vezes, é a única fonte de crédito para fazer compras ou porque estão desempregadas”, diz Becker, para quem isso já está exigindo uma redução no padrão de consumo da população, para um patamar mais “saudável”.