Moradores de Veneza realizam neste sábado uma manifestação na qual farão o "enterro" da cidade, com o objetivo de alertar para o declínio demográfico que, segundo os moradores, é causado pelo turismo em massa e a falta de moradia e trabalho na cidade.
No funeral simbólico, um cortejo fúnebre de barcos a remo vai percorrer os principais canais ao redor do centro histórico.
Um caixão rosa e a tradicional máscara de carnaval, desta vez cobrindo a imagem de uma caveira, vão navegar entre os antigos palácios, pontes e praças. O enterro é um protesto bem-humorado contra o despovamento da cidade, com direito a orações religiosas em dialeto, lágrimas e pesares.
Nos últimos 40 anos, a população local caiu para menos da metade.
No sábado também vai haver uma coleta de DNA. Pesquisadores da Worcester Polythecnic Institute de Massachussets e da National Geographic Society vão aproveitar a presença dos "órfãos" de Veneza para recolher o patrimônio genético dos venezianos.
Eles precisam de 5 mil amostras de saliva que serão incluídas no estudo sobre a origem das populações da Europa centro-ocidental e, por tabela, do nascimento e da migração do povo veneziano pelo mundo.
Perda populacional
Um contador digital de venezianos registra o abandono da cidade, dia e noite. Ele foi montado na vitrine de uma antiga farmácia, entre a ponte do Rialto e a praça de São Marcos, para chamar a atenção dos moradores e dos visitantes.
Os venezianos eram 121.309 em 1966, 84.355 em 1986, e atualmente romperam a barreira dos 60 mil residentes fixos.
A iniciativa da manifestação é de um grupo de moradores, o Venessia.com, com a adesão de outros movimentos sociais como Jovens Venezianos.
"Qual é a novidade? Não estou seguro que exista uma diferença entre 59.999 e 60 mil habitantes", se defende o prefeito Massimo Cacciari.
Turismo
A falta de uma política habitacional e a invasão do turismo em massa estão entre as principais causas desta migração. Todos os anos, Veneza recebe cerca de 20 milhões de turistas.
"Não somos contrários ao turismo, mas sim a esta transformação do tecido urbano e social numa espécie de parque de diversões", disse a BBC Brasil Marco Vidal, presidente da Associação Jovens Venezianos.
Ele pretende recolher 4 mil assinaturas para levar ao novo prefeito, a ser eleito no ano que vem, uma lista de reivindicações e sugestões, como a transformação da zona abandonada do Arsenal em área destinada a residências populares e a empresas do setor terciário.
Enquanto os novos moradores não chegam, os visitantes desembarcam dos navios de cruzeiro e dos ônibus de excursões terrestres. Com uma permanência média de um dia e meio, a grande maioria não consegue admirar os detalhes de Veneza.
A cidade responde a esta "ocupação" perdendo a própria identidade. Nos últimos anos, 40% do artesanato de qualidade desapareceu por causa do impacto desta modalidade de turismo. E muitos lojistas vendem produtos chamados"venezianos", porém feitos na China.
O custo de vida nas alturas leva muitos moradores a trocarem de cidade ou a transformarem os próprios imóveis em pensões para acolher os viajantes de passagem.
Antigas lojinhas locais tradicionais dão lugar a vitrines de grifes globalizadas de luxo e a sofisticadas galerias de arte. Na vizinha ilha de Murano, famosa pela produção de artigos em vidro, as fundições fecham as portas em nome da especulação imobiliária.
Modernidade e raízes
As críticas aos maus tratos sofridos por Veneza são quase unânimes.
"Veneza é a única cidade no mundo na qual um transatlântico navega no meio das casas, pelo Canal Grande. Muitos destes turistas não visitam a cidade porque querem, mas sim porque ela está incluída no pacote vendido pelas agências. Queremos um turismo não elitista mas de qualidade, não podemos ser figurantes da e na nossa cidade", disse à BBC Brasil Francesca Bortolotto Possati, proprietária do hotel de luxo Bauer.
Ela é favorável à cobrança de um ingresso de um valor de cerca de 4 euros (aproximadamente R$ 10) aos visitantes da cidade. Este polêmico projeto, ainda em discussão, serviria para frear e regular o fluxo de presença de turistas na cidade, além de financiar o recolhimento do lixo. Veneza paga a taxa mais alta da Itália.
O assessor do Turismo da Prefeitura de Veneza, Augusto Salvadori, reconhece o problema.
"Modernizar Veneza é uma tarefa muito difícil. Temos que respeitar o contexto arquitetônico, histórico e artístico. Temos que investir em Veneza mas as leis de urbanismo não são suficientes. Queremos que muitos venezianos voltem a morar aqui e vemos uma grande vontade do investidor privado em ajudar neste relançamento", disse ele à BBC Brasil.